segunda-feira, 12 de setembro de 2011

REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Em um Desafio de Aprendizagem da especialização Metodologia e Gestão para Educação a Distância (Anhanguera-Uniderp) acompanhei e comentei postagens de dois blogs. O primeiro foi Educação a Distância: blog brasileiro de Educação a distância, com notícias atualizadas sobre EaD. O outro De Mattar, do professor João Mattar, contém atualizações sobre o trabalho desse docente. Entre os assuntos sobre EaD discorridos destacam-se: mercado de trabalho, aumento de alunos, polêmica de campanha que compara com fast-food, conteúdo aberto, publicações, web 2.0 e redes sociais, interação e aprendizagem.

Ensino a distância – Falta de Tempo – Carreira Profissional
Na dicotomia – necessidade do mercado x falta de tempo dos trabalhadores - aparece uma opção bastante interessante: o Ensino a Distância (EAD). Mesmo com a tradicional dúvida em relação à qualidade dessa modalidade, verifica-se que as empresas compraram essa idéia.
Há instituições sérias de Ensino, no Brasil e no exterior, as quais oferecem a possibilidade de conseguir a formação almejada no tempo e possibilidade dos trabalhadores. No entanto, é válido ressaltar sobre a importância da busca para escolha do curso e instituição. É importante verificar se existe o reconhecimento do MEC, ou se é muito barato, nesse caso, o melhor é olhar com desconfiança.
Com certos cuidados é possível escolher o que melhor se adapta aos objetivos dos estudantes com qualidade. A possibilidade de entrar no Ensino Superior, com a comodidade de fazer a maior parte das atividades no lugar e horário mais adequado para o aluno, ajuda no enriquecimento da formação profissional.

Um milhão de alunos a distância – MEC
A Educação a Distância, criticada por muitos, vem reafirmando sua importância em vários aspectos. Há profissionais formados por essa modalidade atuando no mercado de forma eficiente. Pessoas com tempo limitado e que vivem longe dos centros educacionais tradicionais têm acesso ao Ensino. As provas nacionais demonstram resultados da EAD similares aos dos cursos presenciais.
Tais pressupostos ajudam a desmistificar certos preconceitos referentes à EAD no Brasil e por consequência, aumentar o numero de estudantes. Entretanto, como já citado anteriormente, há melhorias a serem conquistadas na educação brasileira, em especial nessa modalidade. Alcançar a qualidade é possível, com políticas públicas adequadas e dedicação de alunos e professores envolvidos nesse processo.

Aula a distância não é “fast-food”
Para estudantes, ou profissionais, do Serviço Social provenientes do ensino presencial, a modalidade EAD aparece como uma forte competição. O fato de pessoas que não tinham acesso ao Ensino Superior ingressarem nas faculdades aumentou o numero de profissionais da área.
A forma de manifestação por parte do Conselho Federal de Serviço Social, de fato, foi bastante pejorativo em relação à EAD. Os cursos, independente da modalidade, passam por critérios de avaliação nacionais, podendo ser aprovados ou reprovados. A campanha poderia ser utilizada para o debate da questão, e não para o ataque do modelo.
Após estudos e discussões, os profissionais podem sugerir formas de melhoria nessa área de formação, tanto a distância como presencial, pois ambas tem problemas, assim é possível chegar à melhoria da qualidade do ensino, culminando em trabalhadores competentes nessa área.

A virada na formação – Educação a Distância
Os dados apresentados demonstram o alcance da EAD no Brasil, assim como a valorização dessa modalidade por parte da população que apostou nela. Ainda assim, é necessário o aprofundamento dos estudos sobre Educação a Distância para sua melhoria constante, tanto do processo de aprendizagem em si, como da avaliação das instituições. Tais métodos devem ser considerados levando em consideração as especificidades dos locais assistidos pelas instituições, para que o ensino aconteça de forma efetiva.

EaD em beta perpétuo
O uso de material aberto na internet encontra sua importância tanto na educação presencial como a distância. A experiência que tive no ensino presencial, no qual fazia algumas aulas de pesquisa sobre diferentes assuntos de História e Geografia, me mostraram como as crianças e adolescentes encontram caminhos incríveis para desvendar suas questões. Dessa forma, é fácil ver como o conteúdo passa a dinamizar e se misturar com o cotidiano dos estudantes. Nessas disciplinas, via os alunos se sentindo sujeitos no mundo e na História, tudo passava a fazer sentido nessa interação. Hoje, como professora-tutora a distância, percebo que no Ensino Superior os acadêmicos continuam, por vezes, enxergando um abismo entre a teoria e a prática. A percepção da interação entre ambas se dá com a pesquisa. Todas as pessoas dispostas foram largamente favorecidas com a publicação de textos atuais, relevantes e interessantes encontrados na internet. Além da possibilidade de encontrar textos de boa qualidade, é possível, sem muita burocracia, publicá-los também. É nesse movimento dinâmico que a educação está pautada na atualidade, sem desprezar quem não gosta desse método, é uma forma muito mais prazerosa de aprender.

Tutoria e Interação em Educação a Distância
A publicação de um livro sobre tutoria acontece num período bastante fecundo. Sou professora-tutora a distância, no entanto, até agora minha educação foi presencial. Confesso que no período de graduação e mestrado tinha algumas dúvidas em relação à qualidade do Ensino a Distância. Com o tempo, passei a conhecer pessoas se formando por essa modalidade, as quais se destacavam em seus campos de trabalho. Nesse ano, quando comecei a trabalhar com EaD, compreendi um pouco mais da dimensão e da importância de várias pessoas terem acesso ao Ensino Superior a distância. Depois de perceber que tenho alunos com bastante potencialidade de aprendizado e produção em sua graduação, me vi como aluna da especialização Metodologia e Gestão para Educação a Distância. Como acadêmica dessa pós-graduação tive uma nova dimensão, pois o aprender por esse método é muito proveitoso, é possível assistir as aulas mais de uma vez, ler os textos e ter uma resposta rápida das questões que respondemos, ainda, somos instigados a ir além, no campo das possibilidades. Realmente é um privilégio fazer parte desse universo que está crescendo cada dia mais.

Web 2.0 e redes sociais na educação a distância: cases no Brasil
As discussões levantadas no artigo Web 2.0 e redes sociais na educação a distância são bastante relevantes. Os grupos de debate, citados no texto, mostram que é possível essa interação, mesmo podendo ser considerados poucos, casos de sucesso servem de estímulo para outras pessoas repetirem a mesma prática. Outro ponto interessante é o do professor-tutor, o qual, por vezes, é tido como o tirador de dúvidas minimizando seu papel de professor. O levantamento de tais questões certamente ajuda a enriquecer as práticas da educação como um todo. Lembra-se que além da alta potencialidade de aprendizagem na EaD, as redes sociais também podem servir como uma ferramenta importante no ensino presencial.

Interação e Aprendizagem em Ambientes Virtuais
Um dos pontos que considero mais interessantes na apresentação é sobre o questionamento da ausência do corpo na interação e na aprendizagem em ambientes virtuais. Como estudante e professora-tutora a distância, percebo que é possível aprender sem a presença física de um professor. Com orientação, possibilidade de interação e interatividade entre alunos, professores e pessoas com interesses afins, abre-se um verdadeiro leque para a ampliação do conhecimento. Um exemplo são os próprios blogs como o do professor João Mattar, no qual, após a leitura das postagens, aprende-se também com os comentários dos colegas que agregam questões relevantes aos temas e propiciam a discussão.

A experiência de ter conhecido e acompanhado os blogs foram bastante enriquecedoras. Tal prática me estimulou a continuar nesse movimento, os temas são importantes, as opiniões dos seguidores são válidas para reflexões e o leque de possibilidades se amplia, no sentido de conhecer um pouco mais sobre nossa área de atuação. Isso vale para outras áreas de interesse também, é possível aprender por meio da interação com quem compartilha com nossos objetos de estudo e com nossas paixões.

sábado, 27 de março de 2010

História & Perspectivas, Uberlândia (36-37):363-388, jan.dez.2007



HISTÓRIA, IDENTIDADE E DESENVOLVIMENTO

LOCAL: QUESTÕES E CONCEITOS

Vanuza Ribeiro de Lima1

Marcelo Marinho2

Antonio Brand3

RESUMO: O desenvolvimento local baseia-se na capacidade criativa, nos valores e potencialidades, nas formas de expressão cultural e na participação coletiva de uma dada comunidade. Sua condição essencial é a identidade comunitária. Neste estudo, analisam-se as articulações entre memória, história, identidade e participação coletiva, assim como o papel da história no processo de satisfação das necessidades humanas fundamentais.

PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento local. História e identidade. Identidade e participação.

ABSTRACT: The local development is built on the creative power, the potential and values, the distinct forms of cultural expressions, as well as the collective participation of a given community. Its essential condition is the collective identity. This paper is aimed to discuss the relationships between memory, history, identity and collective participation, as well as the role of history with regard to the fulfillment of basic human needs.

KEYWORDS: Local development. History and identity. Identity and participation.

Considerações iniciais

A tradicional noção ocidental de desenvolvimento contempla aspectos exclusivamente econômicos. Contudo, certos efeitos provocados regionalmente pela globalização levaram à necessidade de se refletir sobre o processo e o significado de desenvolvimento, agora em escala local. Tais reflexões consideram o conjunto das necessidades humanas básicas (subsistência, proteção, afeto, entendimento, criação, participação, ócio, identidade e liberdade), para além dos aspectos econômicos. Ora, a memória e a identidade são intermediadores chave para a satisfação de várias das necessidades básicas. Por outro lado, as noções de Capital Social e Capital Humano decorrem, de maneira pronunciada, das articulações entre memória e identidade no âmbito das relações intracomunitárias. Nessa perspectiva, a História (local, regional ou nacional) será aqui analisada como um fator de grande impacto para o desenvolvimento em escala local, na medida em que reflete o processo de formação e consolidação dessa mesma comunidade.

Desenvolvimento local: questões e conceitos

Nos últimos seis anos, a noção de desenvolvimento local passou a ocupar um grande espaço nas discussões governamentais e acadêmicas, assim como nas estratégias de ação por parte da sociedade civil. Uma rápida consulta ao Google, por exemplo, revela extraordinárias 6.000.000 ocorrências da expressão em idiomas das Américas; apenas em Língua Portuguesa, 7.800 referências são apontadas unicamente pelo Google acadêmico. Nesse contexto, o presente estudo baseia-se no conceito de desenvolvimento local como aquele que se articula por meio dos recursos econômicos, humanos, institucionais, ambientais e culturais de localidades e territórios delimitados, com economias de escala e potencialidades ainda por explorar, além de uma forte identidade compartilhada, conforme relembra Tania Zapata4, socióloga consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e autora de diversas publicações sobre o tema.

Nessa perspectiva, quando se fala em desenvolvimento local, não se leva em conta somente o aspecto econômico, mas também se considera o desenvolvimento social, ambiental, cultural e político, ou seja, o desenvolvimento em escala humana5. A teoria do desenvolvimento local integra essas dimensões, haja vista a forte interdependência existente entre elas6. Note-se que o amplo acesso da comunidade aos bens e manifestações culturais reflete-se em maior consciência ambiental e política, por exemplo. Por outro lado, esse amplo acesso pode engendrar múltiplas conseqüências positivas no plano da saúde da população, tanto a saúde física — por meio dos esportes, prática culturalmente compartilhada — quanto a emocional — por meio das válvulas de escape que são os grandes ritos coletivos, tais como festas e celebrações de natureza religiosa (cultos e práticas cotidianas) ou pagã (carnaval ou outros ritos cíclicos e comemorativos), artística (museus, espetáculos ou exibições em locais ritualísticos consagrados pela comunidade) ou desportiva (torneios e exibições atléticas), política (comícios ou pleitos eleitorais, reuniões sindicais ou comunitárias) ou científica (museus ou feiras de ciências).

Tais eventos celebram a cultura e a memória da comunidade, tomando-se aqui o conceito de cultura como uma entidade resultante do encontro entre o modo de vida e os sistemas de valores de uma dada comunidade, na pertinente definição de Mervyn Claxton. O capital social, por sua vez, conforme sustenta Robert Putnam7, professor em Harvard e um dos mais fecundos pesquisadores do capital social, depende do grau de funcionamento das redes sociais, sejam elas de parentesco ou amizade e compadrio, de vizinhança ou de interesses pessoais (religiosos, esportivos, artísticos ou ideológicos), de trabalho ou de estudo, de gênero ou opção sexual, de classe ou capacitação profissional, de faixa etária ou qualquer outra instância de identificação social. Dessas formas de identificação e dessas redes nasce, em variados graus, a confiança mútua entre atores sociais, assim como o associativismo, a reciprocidade de benefícios, a observância das normas coletivas, o respeito aos espaços e bens públicos, o fluxo de informações, a coesão entre grupos distintos – ou seja, o capital social.

Ora, como se observa, tal identificação social é decorrente de fatores culturais – mesmo a identidade de classe, de natureza em princípio econômica, origina-se nos bens e manifestações culturais a que determinado grupo tem acesso (vestuária, culinária, lazer etc.). Nessa perspectiva, a cultura torna-se um fim em si mesma e apresenta-se como fator indissociável do capital social, com fortes implicações na aplicação do capital natural e de outros capitais. Por tais razões, no plano coletivo, é necessário realizar investimentos em cultura, para muito além do capital unicamente econômico ou financeiro. Não por acaso, programas governamentais de fomento à cultura passaram a adotar a expressão “investimento em cultura” como alternativa lingüística mais apropriada à antiga fórmula “incentivo à cultura”.

Por outro lado, o PNUD8 utiliza o conceito e o índice de Desenvolvimento Humano como base do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), no qual são apresentados dados como expectativa de vida, crescimento vegetativo, renda, escolaridade, analfabetismo. Nesse sentido, certos indicadores de desenvolvimento também consideram aspectos como número de livros publicados por ano, número de bibliotecas públicas e investimentos em pesquisa na área de ciências sociais. Sob esse prisma, o desenvolvimento local parte da hipótese de que, para estimar o avanço de uma população, devem-se considerar, para além da dimensão econômica, outras características sociais, ambientais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida e o bem estar coletivos.

A finalidade da elaboração do Índice de Desenvolvimento Humano foi apresentar um contraponto aos índices baseados exclusivamente no Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que consideram apenas a dimensão econômica do desenvolvimento. A noção foi proposta pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq (1934-1998) com a colaboração do economista indiano Amartya Sem (1933-), ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1989. Ao ser criado, o IDH teve o objetivo de representar uma medida geral e sintética do desenvolvimento humano. No entanto, esse índice não abrange todos os aspectos de desenvolvimento e tampouco representa o grau de satisfação pessoal dos indivíduos que pertencem à comunidade.

A partir de 1990, esses aspectos inovadores tornaram-se parte integrante dos RDH, e houve a proposta de se organizar uma agenda sobre temas relevantes ligados ao desenvolvimento humano, com apresentação de tabelas estatísticas e informaçõessobre o assunto. Sob a responsabilidade do PNUD, o relatório também foi idealizado por Mahbub ul Haq e é atualmente publicado em dezenas de idiomas, em mais de cem países10.

Em conferência proferida no Fórum Mundial, Mahbub ul Haq11 reafirma que o desenvolvimento deve corresponder ao enfrentamento de qualquer manifestação da pobreza, e relembra que o conceito de pobreza ultrapassa o simples critério de subsistência. O desenvolvimento deve assegurar eqüidade no tangente a opções e oportunidades de escolha, assim como o direito à liberdade e a autonomia para se buscar melhores condições de vida; em outras palavras, o desenvolvimento deve contemplar o conjunto das necessidades humanas. Haq complementa suas idéias com a seguinte afirmação: “human security means a child who did not die, a disease that did not spread, an ethnic tension that did not explode, a dissident who was not silenced, a human spirit that was not crushed”12.

Nessa perspectiva, Antonio Elizalde13, em seu artigo Desarrollo a escala humana: conceitos y experiência, relembra que as necessidades humanas fundamentais são a subsistência, a proteção, o afeto, o entendimento, a criação, a participação, o ócio, a identidade e a liberdade. Todas têm similar importância e idêntico grau hierárquico, razão pela qual Elizalde apresenta três subsistemas que se estruturam em torno das necessidades básicas e de sua satisfação.

O primeiro desses subsistemas agrupa todas as necessidades humanas, tal como elencadas acima. O segundo engloba as formas imateriais e psíquicas que permitem, aos humanos, a conscientização de suas necessidades básicas fundamentais, ao mesmo tempo em que servem como intermediários entre essas necessidades e os produtos da cultura concebidos para satisfazê-las; em outras palavras, essas formas são histórica e culturalmente modeladas: preferências sensoriais (paladar, olfato, audição, tato, visão), formas de preparo de alimentos e vestimentas, formas de religião, memória, identidade, mitos, entre inúmeros outros. O último subsistema abarca os bens, ou seja, os artefatos materiais produzidos pela cultura, muitos dos quais são o suporte veicular para bens imateriais: utensílios, ferramentas, alimentos, vestimentas, abrigos em suas mais diversas formas, fotografias, filmes, discos, livros, são alguns dentre esses incontáveis bens. Elizalde14 ressalta que, na concepção tradicional de desenvolvimento, a pobreza é definida quase exclusivamente em termos de carência de meios de subsistência. Entretanto, conforme também sustenta Javier Pérez de Cuéllar15, ex-presidente da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da UNESCO e ex-Secretário Geral da ONU, todo projeto de desenvolvimento deve considerar a pobreza como o resultado da impossibilidade de satisfação de qualquer uma das necessidades humanas fundamentais.

Em tal perspectiva, o Desenvolvimento Local corresponde a um processo de melhoramento geral da qualidade de vida e do bem-estar de uma comunidade, com profundo respeito e consideração pelas reais necessidades e aspirações desse povo, assim como pela “sua própria capacidade criativa, seus próprios valores e potencialidades, suas próprias formas de expressão cultural”, como se vê nas idéias desenvolvidas por Mervyn Claxton16, no âmbito da própria UNESCO.

Portanto, se a participação é, por um lado, uma das necessidades fundamentais do ser humano e, por outro lado, é também a chave para o desenvolvimento local, sua essência encontra-se na tomada de consciência, na formação de um senso crítico, de uma sensibilidade e uma identidade comunitária. Ora, tal condição resulta do processo de construção social, histórica e culturalmente definido. Sadi Melo17 relembra que:

La identidad (sea regional o local) es una construcción social que a veces se manifiesta como resistencia a intervenciones exteriores, así como en ocasiones la noción de identidad representa una construcción mitificada de un pasado ya perdido. Lo cierto es que la identidad es un proceso cultural de enseñanza-aprendizaje por parte de una sociedad local. En un proceso que se ubica y se nutre de la tensión entre lo global y lo local.

Nessa perspectiva, lancemos um olhar sobre as relações que se articulam entre identidade e história, com base nas idéias de lugar, de resistência a influências exteriores, de relações dicotômicas entre o local e o global, assim como de relatos e mitos recorrentes no âmbito da comunidade do lugar.

Identidade e História (regional ou local) A história do conceito de identidade é marcada por aspectos que variam segundo o período e o local, segundo valores coletivos e realidades sociais mutantes, ou, em outras palavras, conforme as variações culturais ocorridas no âmbito de uma dada comunidade (definida por gêneros, idade ou condições sócio-econômicas, por etnia, crenças ou categorias de trabalho, em âmbito local, regional ou nacional). Stuart Hall18 propõe três concepções de identidade: a do sujeito do Iluminismo, baseada no indivíduo totalmente centrado, unificado e dotado da razão; a do sujeito sociológico, a qual reflete a idéia de que o núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação com outras pessoas; e a do sujeito pós-moderno, a qual espelha mudanças estruturais e institucionais que tornam o processo de identificação instável e provisório, tornam a identidade transitória e inconstante.

De acordo com esse autor, a necessidade (individual e coletiva) de identidade decorre da falta de continuidade que caracteriza a fragmentária existência humana. Nesse sentido, as lacunas são preenchidas a partir do espaço exterior, sobretudo em forma de discurso. Psicanaliticamente, a busca pela identidade é contínua, fato que resulta na construção, pelo sujeito, de sua própria biografia, discurso que permite agrupar, numa unidade contínua, partes avulsas desse mesmo sujeito, recuperando-se, sob forma de fantasia, uma plenitude inalcançável. Se tal processo é válido no plano individual, assim também o é no plano coletivo. Nesse sentido, Manuel Castells19 indica que:

As identidades são construídas culturalmente, isto é, organizadas em torno de um conjunto específico de valores cujo significado e uso compartilhado são marcados por códigos específicos de auto-identificação: a comunidade de fiéis, os ícones do nacionalismo, a geografia do local.

A formação de identidades baseia-se em elementos discursivos fornecidos pela história, geografia, biologia, memória coletiva, por instituições, relações de poder, interesses, relatos e mitos, entre outros aspectos que compõem a cultura de um determinado grupo de pessoas.

O exercício de produzir a História de um local implica o reconhecimento de processos de identificação dependentes de sistemas culturais que articulam relações de vizinhança, territorialidade e sentimento de pertença, conforme enfatiza o geógrafo Yi-Fu Tuan20. Para esse expoente da geografia humanística, a história corresponde a uma reconstrução consciente do passado com base na memória compartilhada pelo grupo. Do mesmo modo que o sujeito é definido por sua biologia, seu meio ambiente, seu passado, suas influências acidentais, sua maneira de ver o mundo e sua forma de preparar sua imagem pública, também a história exerce um papel essencial na construção de sentido de territorialidade e de lugar pelo ser humano.

Assim, se a história resulta de um processo consciente, a identidade, por sua vez, é construída por meio de processos inconscientes, ao longo de extensos períodos de tempo. Stuart Hall21 acrescenta, com relação à identidade, que “existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre sendo formada”. Para Bárbara Czarniawska-Joerges22, a identidade, fator resultante de um processo contínuo de reconstrução, é indissociável da noção de narrativa “em que tanto o narrador como a audiência formulam, editam, aplaudem e refutam vários elementos dessa narrativa constantemente produzida”. Nesse sentido, Eric Hobsbawm23 sustenta que o passado é um elemento essencial das ideologias totalitaristas, e pode legitimar e fornecer um contraponto glorioso a um presente pouco satisfatório. Por esse viés, o historiador inglês alerta para o poder por vezes nocivo da história:

Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrário, digamos, da de físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode. Nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas, como os seminários nos quais o IRA aprendeu a transformar fertilizante químico em explosivos24.

O historiador deve ser criterioso ao selecionar suas fontes e os fatos do passado, diz o britânico de Alexandria, pois a história fatalmente servirá para fundamentar ideologias e identidades, podendo engatilhar conflitos inter-étnicos como aqueles de que trata Mahbub ul Haq25. Por outro lado, tais ideologias e identidades podem conduzir certos grupos ou comunidades inteiras a um confronto com o mundo globalizado, tal como ocorre atualmente com certos segmentos de inspiração religiosa fundamentalista (Al-Qaeda, por exemplo), ou como ocorreu, em passado recente, com grupos terroristas de inspiração marxista (Sendero Luminoso, Brigadas Vermelhas, Baaden Meinhof, entre outros).

Grupos específicos (definidos por gêneros, idade ou condições sócio-econômicas, por etnia, crenças ou categorias de trabalho, por interesses, preferências ou lugar de residência) são histórica e culturalmente resultantes de movimentos coletivos, e manifestam sinais particulares de identidade, assim como, por vezes, reações defensivas contra certas condições existenciais impostas pela globalização e pelas rápidas e aleatórias transformações por que passa o mundo, conforme salienta Castells26. Em tal contexto, a reconstrução da história de uma comunidade implica partir do princípio de que a história está presente em todos os lugares, em todos os momentos e movimentos, na memória (material ou intangível) do grupo em questão.

Para Joaquim Santos27, é no processo histórico que as populações locais constroem sua identidade social e cultural. Uma identidade, que nasce no cotidiano, está presente no local e na atividade de trabalho, no lar, na família, na escola, na vizinhança e na rua, mas também nos hábitos, costumes e relações que as pessoas mantêm entre si.

Assim, Ana Fani Carlos28 observa que o lugar guarda em si o “significado e as dimensões” da história em processo de reelaboração permanente, e esse “movimento da vida” pode ser apreendido por meio da memória e dos sentidos (paladar, tato, olfato, audição e visão), ou, em outras palavras, por intermédio do corpo em suas múltiplas relações com o lugar. Por esse prisma, o lugar é o ponto de articulação entre a mundialidade em construção e o local em sua dimensão de espacialidade concreta, como salienta a geógrafa:

A natureza social da identidade, do sentimento de pertencer ao lugar ou das formas de apropriação do espaço que ela suscita, liga-se aos lugares habitados, marcados pela presença criados pela história fragmentária feita de resíduos e detritos, pela acumulação dos tempos, marcados, remarcados, nomeados, natureza transformada pela prática social, produto de uma capacidade criadora, acumulação cultural que se inscreve num espaço e tempo29.

Nessa perspectiva, uma história do lugar implica valores e significados que cada pequeno detalhe do conjunto assumirá na complexa rede de relações que se estabelece entre os elementos constitutivos dessa mesma história, desse “movimento da vida”. Processos históricos do lugar e identificação do sujeito são aspectos indissociáveis, implicando a idéia de que o local deve ser elevado à categoria central de análise. Identidade, história e desenvolvimento local Relembre-se que, tal como sustenta Antonio Elizalde30, é possível agrupar as necessidades básicas em torno dos conceitos de subsistência, proteção, afeto, entendimento, criação, participação, ócio, identidade e liberdade. Nesse sentido, a importância da história do lugar para a satisfação de tais necessidades merece ampla discussão, com base na idéia de que o desenvolvimento local implica considerar a pobreza como carência ou impossibilidade de satisfazer tais aspectos básicos da existência humana.

Por esse prisma, vale retomar certas proposições de Jacques Le Goff31, quando esse historiador afirma que é preciso, “antes de tudo, tirar a história do marasmo da rotina, em primeiro lugar de seu confinamento em barreiras estritamente disciplinares”, e cita Lucien Febvre, para quem todo pesquisador deve “derrubar as velhas paredes antiquadas, os amontoados babilônicos de preconceitos, rotinas, erros de concepção e de compreensão”.

Ora, Eric Hobsbawm32 sustenta que “não há povo sem história ou que possa ser compreendido sem ela”, acrescentando que a história “não pode ser entendida exceto por meio das interseções de diferentes tipos de organização social, cada um modificado por interação com os demais”. Como é possível deduzir das idéias do historiador de Alexandria, a história de um povo resulta da reunião, por vezes contraditória, das histórias de comunidades locais que, ao se aglutinarem em torno de uma cultura compartilhada, dão origem ao conjunto desse povo.

Quanto ao papel da história na configuração da sociedade, no caso do Brasil, pode-se lembrar das ditaduras e de seu controle sobre o conteúdo dos textos didáticos, assim como das políticas de nacionalismo implícitas no ensino escolar e universitário. Tal utilização da história também se manifesta entre grupos religiosos e comunitários, como se vê, por exemplo, em livros de cunho local (como ocorre, entre tantos outros, com as diferentes versões de episódios como Palmares, Canudos, Farrapos, Contestado ou, mais recentemente, Araguaia). Para Hobsbawm33, a história, quando utilizada para inspirar ideologias, acaba por se tornar um mito de autojustificação. Nessa perspectiva, é válido lembrar que:

[...] as pessoas que formulam aqueles mitos e invenções são cultas: professores primários laicos ou clericais, professores de colégio ou universidade (não muitos, espero), jornalistas, produtores de rádio e televisão. Hoje, a maioria delas terá ido para alguma universidade. Não se enganem a respeito. História não é memória ancestral ou tradição coletiva. É o que as pessoas aprenderam de padres, professores, autores de livros de história e compiladores de artigos para revistas e programas de televisão34.

O eminente historiador alerta para o fato de que a história, tal como é institucionalmente praticada, desconsidera, no mais das vezes, a “memória ancestral ou tradição coletiva”, aspectos essenciais para a construção de um conhecimento verdadeiramente representativo de uma comunidade. Em outros termos, boa parte da história ensinada é feita de “mitos e invenções”, e difere da história intuída pela comunidade: todo ser humano tem consciência (implícita ou explícita) do passado, cujo veículo privilegiado são os sujeitos mais idosos da comunidade. Em tal contexto, ser membro de uma comunidade é situar-se em relação ao passado coletivo. Para retomar Hobsbawm35, pode-se dizer que a história é uma dimensão constante da consciência humana, é um componente indissociável das instituições, dos valores e dos padrões de comportamento de uma comunidade.

Conclui-se, portanto, que história local e identidade comunitária são dois aspectos profundamente interligados. Entende-se, por esse viés, que na ausência de uma identidade e de uma história próprias, a comunidade terminará por emprestar uma identidade e uma história alheias. Ora, se o grau de confiança entre os membros de uma comunidade depende, entre outros aspectos, da identidade comunitária, Manuel Castells36 indica que “construir intimidade com base na confiança exige uma redefinição da identidade totalmente autônoma em relação à lógica de formação de rede das instituições e organizações dominantes”. A história local, baseada na “memória ancestral ou tradição coletiva”, assume um papel fundamental na construção dessa “identidade autônoma”.

Nesse sentido, a própria Constituição Federal de 1988 prevê a proteção do patrimônio cultural brasileiro, nomenclatura que doravante recobre aspectos que o Decreto-Lei n° 25, de 193737, denominava “fatos memoráveis da história do Brasil, e de excepcional valor”, agora reconhecidos como fatores essenciais da formação da identidade nacional e das múltiplas identidades brasileiras. Não por acaso, o Brasil tornou-se, em 2005, signatário da Convenção Internacional sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, cujos objetivos e princípios diretores prevêem a obrigação de “promover o respeito da diversidade das expressões culturais e a tomada de consciência de seu valor nos níveis local, nacional e internacional”, além de “reafirmar a importância da conexão entre cultura e desenvolvimento para todos os países”38.

Práticas culturais comunitárias e história local são fatores de desenvolvimento na medida em que fornecem as bases para processos coletivos de conhecimento, reconhecimento, auto-conhecimento e auto-reconhecimento. Em outras palavras, fornecem asbases para a construção da identidade e, por extensão, da confiança mútua, da auto-estima, das relações de vizinhança e de compadrio, do empoderamento comunitário, do ócio criativo, assim como da liberdade — aspecto resultante do conjunto dos outros fatores aqui elencados.

Ora, Stuart Hall39 salienta que as identidades modernas passam por um processo de descentralização ou fragmentação. Nessa perspectiva, diferentes identidades entram em situação de conflito, como em pleitos eleitorais, quando os eleitores podem votar por se identificarem com o lugar de origem do candidato, sua posição social, seu gênero, etnia, partido político, ou até mesmo seu time de futebol e sua escola de samba. No contexto dessa realidade fragmentária, muitas pessoas apegam-se a espaços físicos e à sua memória histórica, passando a reafirmar o valor da família e da comunidade, tal como reafirma Manuel Castells40.

Do conjunto das idéias aqui expostas, pode-se inferir que a história, mormente em sua dimensão local, tece estreitas relações com as formas de satisfação das necessidades humanas fundamentais, contribuindo para o processo desenvolvimento local. Nesse contexto, pode-se observar que a história é um fator essencial no universal processo de busca humana por entendimento, sobretudo na esfera local, pois cria os meios para a compreensão das relações de poder no lugar, das formas de ocupação do território, das tradições culturais comunitárias, do funcionamento das instituições e redes de relações, da economia e das religiões locais, das relações interétnicas e inter-classes, entre outros aspectos sócio-culturais. Por outro lado, a história também permite prover elementos para o ócio criativo (museus, livros, filmes, canções) e, por extensão, para a própria criatividade e a inovação, suprindo a necessidade humana de criação.

Na mesma perspectiva, a história local é a base para a construção da identidade, das redes comunitárias e, por conseguinte, da participação individual na vida da coletividade, aspectos que conduzem ao empoderamento e à liberdade, necessidades humanas fundamentais. Até mesmo a subsistência é garantida, pela história, à parcela da população que se ocupa da elaboração, preservação e difusão de conhecimentos derivados da memória coletiva, tais como os profissionais ligados ao ensino, aos museus e arquivos, à pesquisa, à produção de livros, filmes e outros produtos culturais. É preciso igualmente sublinhar que certas pesquisas históricas recuperam antigas práticas tradicionais caídas em desuso, tais como o cultivo de espécies de milho por parte de povos indígenas, cujas sementes foram, ao longo do tempo, substituídas pelas sementes híbridas de grandes empresas agrícolas. Dessa forma, a história, ao se materializar em forma de conhecimento, contribui para a subsistência dessas populações.

Vale também dizer que, no caso de populações tradicionais — como indígenas e quilombolas —, a história, ao se revelar, fornece proteção contra a expropriação territorial e a violência do Estado ou de colonizadores ávidos por expandir a área de suas propriedades fundiárias. Graças a pesquisas históricas, centenas de territórios quilombolas e indígenas estão hoje oficialmente demarcados no Brasil.

Nesse sentido, se a pobreza pode ser considerada como o resultado da carência ou da impossibilidade de satisfazer quaisquer das necessidades fundamentais, a ausência do registro da história coletiva, em dada comunidade, reflete certo grau de pobreza desse agrupamento humano. Promover o registro da memória comunitária e a elaboração da história local é umas das formas de se promover o desenvolvimento local. Como promover esse processo em sociedades multi-étnicas, como é o caso da brasileira? Como promover o direito à memória por parte de grupos minoritários, como os indígenas?

Memória, história e desenvolvimento local: o papel de professores pesquisadores indígenas

No Brasil, dos estimados cinco milhões de indígenas existentes quando da chegada dos conquistadores portugueses, a população foi reduzida a cerca de 700.000 indivíduos, segundo o censo demográfico nacional do ano de 2000. Entre as pouco mais de duzentas nações indígenas hoje existentes no território brasileiro, os povos Kaiowá e Guarani ocupavam, até o início do século XX, um amplo território situado na região sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul, somando aproximadamente 26.000 km². Com relação a esses povos, entre os anos de 1915 e 1928, o Governo Federal demarcou oito reservas, perfazendo um total de 18.124 ha (181,2 km²) — e o restante do território indígena foi entregue à colonização41.

Tem início, no plano oficial, um processo de deslocamento e de confinamento compulsórios de inteiras aldeias e de extensos grupos macrofamiliares, instalando-se a população Kaiowá e Gurarani no interior dessa área extremamente reduzida, de forma sistemática e forçada. Tal processo resulta numa forte e violenta desterritorialização dessas comunidades. Como conseqüência, no plano local, surgiram e aprofundaram-se inúmeros problemas ambientais e sociais decorrentes da desterritorialização e do confinamento: erosão dos solos, contaminação dos mananciais aqüíferos, desaparecimento de práticas culturais tradicionais, desagregação familiar e comunitária, dependências químicas diversas, prostituição, violência, desnutrição, inanição infantil, suicídio de jovens indígenas, entre vários outros42.

No curso das três últimas décadas, contudo, os Kaiowá e Guarani retomaram onze parcelas de suas antigas terras, num total de 22.450 ha. que se encontram, doravante, legalmente em posse dos indígenas. Outras pequenas áreas estão identificadas ou em processo de identificação — em alguns casos, foram fisicamente ocupadas e se encontram sob litígio judicial. Nesse processo, historiadores, antropólogos e arqueólogos exercem papel decisivo, ao apontar indícios documentais sobre a antiga ocupação do território. A história, por longo tempo obliterada, materializa-se e torna-se vetor de libertação e empoderamento. Vale observar que, nos dias de hoje, professores indígenas participam ativamente de pesquisas sobre o processo histórico de confinamento43. Nas páginas a seguir, analisa-se o papel de professores Kaiowá e Guarani, sobretudo no tocante a suas pesquisas sobre história indígena, aqui tomada em sua dimensão de memória e cultura, fatores determinantes da identidade e do desenvolvimento local.

É relevante o fato de que a perda de territórios indígenas acompanhou-se da instalação, nas reservas, de escolas e igrejas evangélicas — a Missão Kaiowá, em 1928, e as Igrejas Neopentecostais, a partir da década de 1970. À sua maneira, tais instituições buscavam contribuir para com a sobrevivência dos grupos indígenas; entretanto, essa contribuição passou pelo ocultamento de importantes parcelas da cultura desses povos, da língua à história, da alimentação à vestuária, da cosmogonia às relações familiares. Sob o argumento de que era necessário civilizar povos atrasados e privados de cultura, os colonizadores apresentavam como improdutivos, inúteis e retrógrados o modo de vida e os saberes tradicionais. Obviamente, a cultura (e a memória) do colonizador deveria preencher o espaço desocupado. O desenvolvimento apresentou-se, aos indígenas, como integração ao “superior” sistema do não-indígena. Nessa ordem de idéias, a perda do território para as frentes de colonização implicou a perda de importantes marcos e rastros da memória histórica dos povos nativos.

Ora, a “memória é a vida do passado no presente”, conforme sustenta Tzvetan Todorov44. Para além de um simples “substrato passivo, um manancial de sobrevivênciavestigiais”, a memória é um “princípio ativo”, uma ação “representativa” ou “auto-representativa”, que confere “unidade no tempo”, segundo relembra o arqueólogo Luiz Norberto Guarinello45. A memória permite compreender as permanências e as transformações, leva o grupo ou o indivíduo a construírem sentidos para suas leituras do presente. Naturalmente, o papel do educador, no âmbito da comunidade, será de fundamental importância para a recuperação, a preservação ou, por outro lado, para o efetivo ocultamento da memória coletiva.

Parte significativa dos professores indígenas Kaiowá e Guarani, hoje atuando como educadores em suas comunidades, formou-se em escolas fora de suas aldeias e de sua tradição cultural. Muitos deles são filhos de pais evangélicos, outros tantos são ativos participantes dessas igrejas. Entre os mais antigos, todos foram educados no sistema ideológico oficial que vigiu entre 1915 e 1988. Contudo, o texto constitucional de 1988 colocou esses professores diante de um processo novo e desafiador. A “Constituição Cidadã” afirma o direito à diferença e faz do Estado um agente promotor da diversidade cultural, em substituição a seu antigo ofício de executor da integração forçada dos indígenas. Por outro lado, o Brasil aderiu, em 2005, à Convenção Internacional sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais46.

Tais aspectos impõem a completa revisão do sistema educacional no interior das áreas indígenas, sejam elas reservas ou aldeias rurais e urbanas: de uma escola e de educadores destinados a preparar a criança indígena para adotar práticas culturais alheias à comunidade, surge o desafio de se construírem alternativas de futuro a partir da cultura própria à comunidade, o desafio de se construir um processo de desenvolvimento local que permita a satisfação das necessidades humanas fundamentais: subsistência, proteção, afeto, entendimento, criação, participação, ócio, identidade e liberdade. Nesse processo, a escola indígena deverá contar com a participação da própria comunidade na definição de seus objetivos, dos conteúdos didáticos e das metodologias de ensino; e, acima de tudo, essa escola deverá superar as relações de dominação cultural frente às culturas não-indígenas, conforme orientam os Referênciais Curriculares Nacionais de Educação Indígena (RCNEI)47. Em tal contexto, convida-se o educador indígena a se posicionar como “interlocutor entre as aspirações da comunidade, as demais sociedadesea escola”48.

Nessa esteira de preocupações, passou a atuar o Programa Kaiowá-Guarani, desenvolvido por um amplo grupo de trabalho multidisciplinar e interinstitucional, com projetos de pesquisa e extensão destinados tanto às sociedades indígenas Kaiowá e Guarani quanto às demais etnias que habitam o Estado de Mato Grosso do Sul, em comunidades que somam um contingente de aproximadamente 70.000 pessoas49.

O processo de formação de professores Kaiowá e Guarani é uma das principais áreas de atuação do Programa, com ênfase na discussão e na revisão crítica da história indígena, com base na memória dos anciãos e com apoio em um centro de documentação criado especialmente para esse fim. Desde o início, os estudos provocaram imediata adesão por parte de professores indígenas, os quais têm nítida consciência de que a história de seus antepassados e de seu povo foi enterrada na vala comum do esquecimento. A história regional oficial omitiu o registro da presença dos povos indígenas no processo de ocupação territorial, apresentando essa extensa e relativamente povoada região como um vazio demográfico, inclusive nos manuais didáticos utilizados pelos próprios indígenas. A omissão voluntária e oficial desse aspecto da história engendrou a perda dos direitos de posse legal sobre largas faixas de território, mas a memória coletiva permite restaurar o direito moral desses povos.

Realizadas com ampla participação dos educadores indígenas, as pesquisas revelaram, nas palavras de diversos líderes religiosos Kaiowá e Guarani, que a vivência e a prática da religião são as mais importantes características do tradicional modo de ser dos antepassados, uma das bases da antiga identidade compartilhada pela comunidade. A reza e o canto emergem como o centro e o fundamento do tekoyma, o modo de ser tradicional, que permanece vivo na memória dos Kaiowá e Guarani mais idosos. O ancião Júlio Lopez50, por exemplo, chorou durante a aty guasu, a “reunião grande” das lideranças indígenas, enquanto descrevia aos demais participantes como era a vida dos Kaiowá em tempos passados. O ancião Paulito Aquino, por sua vez, fala da “tristeza dos cantos que têm história”51.

O depoimento desses indígenas demonstra o importante papel da memória na construção da identidade coletiva, enquanto comprova a idéia de que a interpretação do presente também se sustenta nessa mesma memória, transmitida de geração em geração — oralmente ou por meio de práticas culturais. Em que condições professores indígenas educados fora do sistema Kaiowá e Guarani — privados da companhia da palavra dos antigos — teriam a possibilidade de participar desse processo de recuperação da memória e da história indígenas?

Os professores indígenas, apesar da educação recebida no âmbito da cultura não-indígena, percebem que a memória do passado não é, verdadeiramente, o passado transcurso; essa memória é antes um passado que permanece presente, um passado atualizado a cada novo instante, que prossegue significando no presente. Essa memória é algo a ser recriado e re-vivido, como alternativa de vida, caso o passado não tenha apresentado sentido efetivo na vida da comunidade. Os professores mais engajados na construção de uma nova escola verdadeiramente indígena buscam reverter a concepção coletiva de história, construída com idéias impostas pelos colonizadores. O passado assume sua condição de continuidade a ser reconstruída, as experiências deste passado são repensadas com imagens e idéias de hoje. Com intensa satisfação, esses professores percebem o potencial de empoderamento e de luta que nasce do reencontro com sua memória própria, com essa nova história que contesta a versão do colonizador. Esses educadores entrevêem, com clareza, novas perspectivas de futuro para suas comunidades, assim como o novo papel político a ser exercido, pela escola, na construção desse futuro.

A experiência de trabalho dos professores-pesquisadores indígenas Kaiowá e Guarani demonstra a relevância da história, conservada pela memória dos membros mais idosos da comunidade, para restabelecer o verdadeiro caminho percorrido pelos povos indígenas ao longo dos quinhentos anos de colonização no Brasil. Com a experiência levada a efeito por esses educadores, pode-se inferir que, por meio da pesquisa da história indígena, é viável restaurar a auto-estima de grupos minoritários, é possível promover o entendimento, o auto-conhecimento, a identidade, o empoderamento e a liberdade. Em outros termos, memória e história demonstram seu papel no processo de construção do desenvolvimento local.

Considerações finais

O desenvolvimento local contempla aspectos que se situam muito além da simples dimensão econômica, pois busca atingir o conjunto do desenvolvimento social, ambiental, cultural e político, ou seja, o desenvolvimento em escala humana. Em tal contexto, a história aparece como condição essencial, uma vez que materializa certas articulações essenciais entre memória, identidade e participação coletiva. Igualmente, a pesquisa e o registro da história viabilizam a satisfação de certas necessidades humanas fundamentais, como o entendimento, a criação, a participação, a proteção, o ócio, a identidade e a liberdade, assim como a própria subsistência de significativa parcela da população. No caso de sociedades tradicionais, história e memória podem conduzir ao empoderamento e ao desenvolvimento social, político e humano de comunidades relegadas ao descaso por parte das políticas públicas nacionais, regionais ou locais.

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Notas

1 Pesquisadora bolsista da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul (FUNDECT/MS), graduada em História e mestranda em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco. Endereço para correspondência: Rua Paraíba, 217 –

Camapuã – MS, CEP 79420-000, fone (67) 99912990, email: vrl_historia@hotmail.com.

2 Docente-pesquisador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco, na área de Cultura e Desenvolvimento. Doutor em Literatura Comparada pela Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle, França), pós-doutor em Estudos Culturais pela Universidade Eötvös Loránd

de Budapeste (ELTE-BTK, Hungria) e pela Université du Quebec à Montreal (UQAM, Canadá). Endereço para correspondência: Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local (UCDB), Avenida Tamandaré, 6000 – Jardim Seminário, Campo Grande – MS, CEP 79117-900, fone (67) 33258277, email:

marinho@ucdb.br.

3 Docente-pesquisador do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica Dom Bosco, na área de Etnodesenvolvimeento, Cultura e História Indígenas. Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Coordenador do Programa Kaiowá-Guarani. Endereço para correspondência: Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local (UCDB), Avenida Tamandaré, 6000 – Jardim Seminário, Campo Grande – MS, CEP 79117-900, fone (67) 33123591, email: brand@ucdb.br.

4 ZAPATA, Tânia. Estratégias de desenvolvimento local. São Paulo: Coordenadoria de Assistência Técnica do Governo do Estado de São Paulo. Publicado em 24/10/2006. Disponível no site: http://www.cati.sp.gov.br/novacati/pemh/doc_pub/Estrategias%20de%20Desenvolvimento%20Local.pdf. Acesso em 13 agos de 2007.

5 CLAXTON, Mervyn. Decênio mundial para el desarrollo cultural 1988-1997: Cultura y desarrollo. Paris: UNESCO, 1994. Disponível no site: unesco.org/images/0009/000970/097070S.pdf> . Acesso em: 24 agos de 2007.

6 ZAPATA, T. op. cit.

7 PUTNAM, Robert. Comunidade e Democracia – A experiência da Itália Moderna. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2006

8 PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Desenvolvimento humano e IDH. Disponível em: http://www.pnud.org.br/idh/. Acesso: 20 de agos 2007.

9 Idem.

10Ibidem.

11 HAQ, Mahbub ul. Towards a more compassionate society.(State of the World Forum: 8 November 1997). Disponível em: http://www.mhhdc.org/html/speeches.htm. Acesso: 22. ago. 2007.

12 Idem.

13 ELIZALDE, Antonio. Desarollo a escala humana: conceptos y experiências. Interações. Campo Grande: UCDB, v. 1, n. 1, p. 51-62 set. 2000.

14 Idem.

15 CUÉLLAR, Javier Pérez de. Nuestra diversidad creativa: informe de la comisión mundial de cultura y desarrollo. Paris: UNESCO, 1996.

16 CLAXTON, M. p. 5.

17 MELO, Sadi. Desarrollo Local e Identidad. In: ROZAS Germán O. e ARREDONDO Juan. Identidad, comunidad y desarrollo. Santiago de Chile: Universidad de Chile/ Gobierno de Chile, 2006, p. 143. Disponível em: Acesso em: 24 agos 2007.

18 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

19 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura – a sociedade em rede. 7 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 79.

20 TUAN, Yi-Fu. Geografia humanística. In. Annals of the Association of American Geographers. vol. 66, n. 2, jun. p. 266-276. 1976.

21 HALL, S. p. 38.

22 CZARNIAWSKA-JOERGES, Barbara. Autobiographical acts and organizational identities. In: LINSTEAD, S. GRAFTON-SMALL, R.; JEFFCUTT, P. (Ed.). Understanding Management. London: Sage, 1996, p. 160.

23 HOBSBAWM, Eric. Sobre História (Ensaios). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

24 Idem. p. 17.

25 HAQ, M.

26 CASTELLS, M.

27 SANTOS, Joaquim Justino Moura dos. História do lugar: um método de ensino e pesquisa para as escolas de nível médio e fundamental. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 9, n. 1, jan.-abr, p.105-24. 2002.

28 CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 15.

29 Idem, p. 30.

30 ELIZALDE, A.

31 GOFF, Jacques Le. Reflexões sobre a história. Lisboa: Edições 70, 1986, p.29-30.

32 HOBSBAWM, E. p. 186.

33 Idem.

34 Ibidem. p. 19-20.

35 Ibidem.

36 CASTELLS, M.

37 DECRETO-LEI Nº 25, de 30 de novembro de 1937. Disponível em: . Acesso em: 8 set 2008.

38 UNESCO. A Convenção da UNESCO sobre a Diversidade Cultural. Disponível em: <>. Acesso em: 8 set 2008.

39 HALL, S.

40 CASTELLS, M.

41 BRAND, Antônio. Povos indígenas na região do Pantanal e do Cerrado: desenvolvimento participativo, universidades e pesquisa-ação. Montreal, Université du Quebec à Montreal (UQAM), 2006. Disponível em <> Acesso em: 8 set 2008.

42 Idem.

43 BRAND, Antônio. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra. Tese de Doutorado em História, Porto Alegre, PUC, 1997.

44 TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem. São Paulo: Arx, 2002, p. 141.

45 GUARINELLO, Norberto L. Memória coletiva e história científica. Conferência proferida no I Congresso de Ciências Humanas das Universidades Federais de Minas Gerais. São João Del Rei, maio de 1993, p. 187-188.

46 UNESCO.

47

RCNEI. Referênciais Curriculares Nacionais de Educação Indígena, 1998, p. 24.

48 Idem. p. 43.

49 PROGRAMA KAIOWÁ-GUARANI. Disponível em <> Acesso em: 18 set 2008.

50 In: BRAND, A. (1997).

51 Idem. p. 201.

terça-feira, 23 de março de 2010

A DEVOTA FLORENTINA ARMOA*

Maria Augusta de Castilho

Osvaldo dos Santos

Vanuza Ribeiro de Lima

1- A capela: um espaço sagrado

Dona Florentina, uma senhora de oitenta e um anos de idade é devota da Santíssima Trindade e de Nossa Senhora de Caacupé. Mantém em sua casa uma capela que pode ser visitada por qualquer pessoa que a procure, e várias pessoas o fazem.

A capela de dona Florentina pode ser considerada espaço sagrado, uma vez que para Zeny Rosendahl:

[...] define-se o espaço sagrado como um campo de forças e valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo, que o transporta para um meio distinto daquele no qual transcorre sua existência. É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de mediação entre o homem e a divindade. (ROSENDAHL, 1997:122)

Existe uma grande procura por esse espaço e por essa pessoa, isto pode ser comprovado pela extensa lista de cartas com pedidos ou agradecimentos que as pessoas mandam para ela em busca de ajuda para solução de seus problemas, além disso, a capela é cheia de presentes e também de objetos como muletas de pessoas que não precisariam mais usar, por exemplo. Três dias por semana dona Florentina recebe as pessoas em sua casa e essas comparecem para poder visitá-la, quando o grupo de estudantes do Mestrado em Desenvolvimento Local fez uma visita a essa senhora ela concedeu a entrevista e não deixou de comentar sobre a característica e anseios de cada um, enquanto conversávamos algumas pessoas foram até a casa dela para serem atendidas também.

Essa senhora revelou já ter sido chamada de bruxa, feiticeira entre outras coisas, pois, ao que tudo indica, ela é capaz de prever ou saber de coisas que as pessoas não contam. Porém é válido ressaltar que:

Tudo é potencialmente sagrado, mas apenas em alguns lugares escolhidos o potencial é realizado. A manifestação de poder do sagrado em determinados lugares o diferencia dos demais lugares. O poder do sagrado pode ser atraente, tornando o lugar um centro convergente de crentes, ou pode ser apavorante e repelente, tornando o lugar tabu, considerado maldito. (ROSENDAHL, 1996: 67-68)

Dona Florentina é extremamente religiosa e cativante, consegue reunir em seu território diferentes pessoas, e por meio de sua religiosidade é capaz de ajudá-las conversando, rezando, abençoando e confortando das angustias que se encontram.

2- Trajetória de vida: as revelações

Filha de franceses, nascida no Paraguai aos vinte e nove anos pretendia ser freira na Argentina, contudo, na cidade de Buenos Aires recebeu uma recusa por parte da Igreja Católica. Ela ficou tão frustrada com essa negativa que tentou se suicidar entrando na frente de um trem, porém não teve coragem de encontrar com a morte naquele momento.

Na vida dos grandes místicos averiguamos uma clara e distinta manifestação do Sagrado num determinado espaço, ou acontecimento, fazendo com que essas pessoas numa ação de transformação assumissem um itinerário catalisador levando o contexto de outrora vivido numa dimensão de hierofania.

Segundo Francisco García Bazán

Embora a etimologia da palavra “mística” , da raiz grega my, presentes por caminhos diversos em ta mystik’á (o que se refere a certos ritos), hoi mystikoí (os iniciados em tais ritos) e mystérion (secreto), vincula-se estreitamente com a própria natureza da experiência que procura designar, isto é, com um tipo de vivência humana extraordinária e estranha e por isso indescritível [...]. (BAZÁN. 2002, p. 85-86).

São Bernardo chega a dizer: "O espaço é você". Ou seja, com a lucidez do auto-conhecimento, a pessoa é levada a desmistificar o sentido do viver, do pensar, do agir, do expressar, decodificando na cotidianidade existencial que o sujeito (eu) pertence a um todo, que cada criatura é complemento da outra e que somos partículas de um todo, transcendente, que estamos unidos sinergicamente.

Primeiro, o espaço sagrado é um meio de comunicação com os deuses e a respeito dos deuses. Segundo, é um lugar de poder divino. Terceiro, serve como um ícone visível do mundo e, portanto, em parte uma forma e uma organização aos seus habitantes.(BRERETON, J. P. apud ELIADE, M.)

Essa percepção individual da dona Florentina deu-se no hospital Pirovano (Uruguai), quando por motivo de um desmaio ficou internada por cinco meses. Já estava desenganada pelos médicos quando num dia, aconteceram coisas misteriosas, que ela relata como se fosse um chamado, uma voz que dizia: “Florentina, Levanta-te salva teu calvário!” onde atesta ter visto espiritualmente uma enorme cruz sem Jesus Cristo.

No mesmo hospital em que ficou internada foi ao quarto de uma senhora que estava morrendo, chegando lá fez uma massagem nessa mulher e a mesma não morreu. A partir daí sua fama se espalhou pelo hospital e outras pessoas passaram a procurar dona Florentina para fazerem pedidos.

Ao sair do hospital pediu uma carta de apresentação para conseguir um emprego e foi para o Rio de Janeiro. Chegando naquela cidade conseguiu trabalhar na casa de um químico e logo depois se mudou para Campo Grande onde mora até hoje.

Este insight foi o porvir de uma longa trajetória que assume até hoje como uma missão, pois manifesta para todas as pessoas que a procuram um dom sobrenatural, que não faz parte do senso comum, daí o sentido do espaço sagrado que foi capaz de construir, fazendo com que muitos a procurem para ser abençoado ou poder ouvir alguma coisa a respeito de si, no presente que seja possivelmente vivenciado no futuro.

3- Florentina e seu envolvimento paroquial.

O primeiro encontro com a comunidade, que estava em andamento, ou seja, nos seus inícios, se deu no ano de 1967, quando esta foi apresentada ao Padre Righetti, pela irmã Aurencie. Naquela época faltava tudo e um dos primeiros trabalhos foi pedir doação de material litúrgico para a celebração da eucaristia que acontecia numa tapera, onde mais tarde se construiu um barracão para atender a diversos ofícios.

No sábado à tarde, junto com outras pessoas colaboradoras, munidas de baldes, vassouras, panos e rodos iam limpar o barracão, que servia para as celebrações religiosas, passar filmes e teatro. No domingo havia a missa, encontro de catequese e ao longo do dia atividades, onde ficava também no barzinho e dava assistência aos garotos que machucavam nas brincadeiras. Pode-se dizer que o domingo todo estava ali, dando sua parcela de colaboração e ajuda até a noite, onde enfrentava o matagal para voltar para a casa com as crianças.

Seu desprendimento é tal que, mesmo passando por grandes dificuldades financeiras, foi capaz de doar três terrenos a comunidade da vila Almeida e não estando satisfeita com isso doou mais um terreno ao bispo, Dom Antônio Barbosa, onde hoje está construído o centro comunitário da mesma vila..

Naquela época começou a movimentar a comunidade para construir a Igreja, esbarrando num pequeno problema, a autorização para o fechamento da rua, de modo que esta fosse construída num lugar de destaque e presença, aqui entra a influência da dona Florentina, que através de um vereador conseguiu que a câmara liberasse o fechamento da rua, num tempo que diria recorde para a época, em menos de três meses. E assim a Igreja começou a ser construída onde se encontra hoje, a paróquia de nossa senhora Auxiliadora.

Consciente se sua missão foi capaz de passar por várias provações, sejam elas críticas por parte da comunidade ou em alguns casos de alguns padres que a consideravam como uma bruxa. Em certa ocasião acusaram-na de estar ganhando muito, e até fizeram um abaixo assinado pra tirá-la. Mas na verdade todas as pessoas que iam a sua casa em busca de uma benção ou cura ela pedia alguma coisa que oferecia gratuitamente a Igreja, daí os comentários que ela ganhava muito, mas simplesmente ela fazia o papel de ponte, entre as pessoas que doavam e a Igreja. Segundo dona Florentina “as vezes nem pão tinha em casa para dar aos meus três filhos, mas o amor e a fé em Deus e a Nossa Senhora fazia com que almas generosas vinham nos socorrer”. Somente uma pessoa imbuída de certos princípios e compreensão seria capaz de transpor certas intempéries e superar preconceitos concedendo perdão e aceitação das opiniões alheias.

Assim, como nos muitos casos de experiência mística, temos aqui uma forte conexão da pessoa da dona Florentina com a revelação divina e assume que por esse motivo assumiu esta missão, de ser instrumento para os fiéis como ponte de ligação, levando a todos que a procuram uma experiência de amor e a fé em Deus e em Nossa Senhora.

A festa de comemoração, onde se expressa a devoção aos santos, é celebrada anualmente no dia 8 de dezembro. Dá-se como um momento de agradecimento pela missão recebida com distribuição de doces, bolos e refrigerantes para as crianças.

O trabalho de dedicação no barracão, que mais tarde conseguiram erguer a Igreja, foi devido a uma visão que teve do chamado a estar naquele lugar, no ano de 1966, na visão, uma jovem senhora de semblante vibrante e auréola na cabeça convidava a tomar conta daquele lugar (Igreja) como se fosse da sua casa.

Outra visão que teve foi do Pai Eterno, dizia ela que, o Pai estava numa alta montanha sentado apoiado um dos pés numa pedra e a outra no chão, aproximou-se, chorando, encostou a cabeça no seu colo, onde o Pai disse: “porque choras? Coragem, nenhuma das pessoas que a critica poderá vencer, pois estou contigo”.

No ano de 1966, quando teve um sonho com o Papa, logo contou ao padre Righetti e a irmã Fúlvia, relatando que o papa viria em Campo Grande, no bairro Santo Amaro, ambos riram do que ela estava falando e depois a chamou de louca por dizer tal coisa. Mas conforme o predito, o fato aconteceu nos dia 17 de outubro de 1991, quando o Papa celebrou a missa naquele bairro.

4- Reconhecimento da comunidade e do clero

Além da participação ativa da comunidade na capela que se localiza na casa de dona Florentina existe uma manifestação de carinho e agradecimento a essa devota explicitado e documentado em cartas e presentes destinados a ela. De todos esses anos de missão, essa senhora arquiva um montante de trinta e seis quilos de cartas-testemunhos.

Em uma dessas cartas-testemunhos encontramos tais manifestações da comunidade agradecendo os três terrenos que ela conseguiu para construção da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia e a imagem dessa santa, que lhe foi revelada por meio de sonho; o crucifixo do presbitério também foi doado por ela. “Graças a Dona Florentina, hoje temos a graça de contarmos com Nossa Senhora da Misericórdia, que homenageamos desde o começo, no dia quinze de setembro.” (OLIVEIRA, 2005).

O reconhecimento dessa devota não fica somente no âmbito da comunidade dos fiéis, mas também por parte do clero daquela paróquia onde se localiza aquela senhora, pode-se perceber isso com o testemunho do pároco Mario O. Panziero, na ocasião da comemoração dos cinqüenta anos de missão de dona Florentina.

Dona Florentina é missionária, evangelizadora e profeta da paz [...] sempre foi evangelizadora do povo. Sinto-me honrado como pároco em ter uma pessoa, uma evangelizadora que sempre estava à frente da missão, com iniciativa de preparar celebrações, festa para as crianças, procissões, homenagens à Nossa Senhora.

Eis a profeta da fé, orientou e orienta a viver a fé a viver o sacramento da confissão, da eucaristia a fazer orações verdades, a controlar a língua, os atos, o coração.

50 anos de Missão, a serviço do Pai! (PANZIERO, 2004)

5- Considerações Finais

Sabemos que as manifestações do sagrado ocorrem no tempo e no espaço. Como o tempo, o espaço é uma dimensão inescapável da vida humana. O reconhecimento da sacralidade de certos lugares é fundamental para a construção do sentido da vida. O local de uma hierofania, cratofania, ou teofania, é, por excelência, um lugar de poder e de sacralidade. De acordo com Eliade:

[...] toda a cratofania e toda a hierofania, sem distinção alguma, transfiguram o lugar que lhes serviu de teatro: de espaço profano que era até então, tal lugar ascende à categoria de espaço sagrado. (ELIADE. 1993, p. 295)

Podemos dizer que na residência da dona Florentina, situada a rua Guiratinga, há um pequeno templo, um cantinho predileto (capela), ornado com relicários, imagens, velas, fotografias, símbolos místicos, cartas das testemunhas e diversos amuletos, como bengalas, pernas de cera e mesmo cabeças que simbolizam as curas, tornando o lugar sagrado.

O verbo latino sancire (cujo particípio é sanctum) quer dizer "consagrar, reconhecer". O território em questão, como atestam os testemunhos, sem margem de dúvida é consagrado e em todos os atendimentos que se faz, há um certo direcionamento para que o fiel se aproxime mais de Deus, sendo mais ativo e participativo na Igreja, ou seja, na sua paróquia. O espaço é Cristo.

Sempre, aos domingos, encontramos na Igreja dona Florentina, fazendo comunhão, e ao aproximar da comunhão, estando na fila juntamente com aquelas pessoas que são mais próximas a ela, e que não estão de acordo com as leis da Igreja, ela sussurra em seus ouvidos que não são dignas de tal comunhão, fazendo com que as pessoas tomem mais consciência de seus atos e se preparem melhor para receber o Cristo.

6- Referências

BAZÁN, Francisco García. Aspectos Incomuns do Sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.

BRERETON, J.P. Sacred Space. New York: Macmillan, 1987. vol. 12, p. 528.

ELIADE, M. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MOLINOS, Miguel. Defensa de la Contemplación. Madri: Fundación Universitaria Española y Universidad Pontificia de Salamanca. 1988.

OLIVEIRA, Francisco Manoel Araújo de. Comunidade Nossa Senhora da Misericórdia. Campo Grande / MS, 15/09/2005. Carta.

PANZIERO, Mario O. Florentina Armoa: Missionária... Evangelista.... Carta a dona Florentina Armoa. Campo Grande / MS, 29/08/2004. Carta.

ROSENDAHL, Zeny. Espaço e Religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996.


*Texto publicado no livro: O sagrado e o místico da fé católica no contexto da territorialidade urbana em Campo Grande-MS / Maria Augusta de Castilho (organizadora) - Campo Grande: UCDB, 2006.