terça-feira, 23 de março de 2010

A DEVOTA FLORENTINA ARMOA*

Maria Augusta de Castilho

Osvaldo dos Santos

Vanuza Ribeiro de Lima

1- A capela: um espaço sagrado

Dona Florentina, uma senhora de oitenta e um anos de idade é devota da Santíssima Trindade e de Nossa Senhora de Caacupé. Mantém em sua casa uma capela que pode ser visitada por qualquer pessoa que a procure, e várias pessoas o fazem.

A capela de dona Florentina pode ser considerada espaço sagrado, uma vez que para Zeny Rosendahl:

[...] define-se o espaço sagrado como um campo de forças e valores que eleva o homem religioso acima de si mesmo, que o transporta para um meio distinto daquele no qual transcorre sua existência. É por meio dos símbolos, dos mitos e dos ritos que o sagrado exerce sua função de mediação entre o homem e a divindade. (ROSENDAHL, 1997:122)

Existe uma grande procura por esse espaço e por essa pessoa, isto pode ser comprovado pela extensa lista de cartas com pedidos ou agradecimentos que as pessoas mandam para ela em busca de ajuda para solução de seus problemas, além disso, a capela é cheia de presentes e também de objetos como muletas de pessoas que não precisariam mais usar, por exemplo. Três dias por semana dona Florentina recebe as pessoas em sua casa e essas comparecem para poder visitá-la, quando o grupo de estudantes do Mestrado em Desenvolvimento Local fez uma visita a essa senhora ela concedeu a entrevista e não deixou de comentar sobre a característica e anseios de cada um, enquanto conversávamos algumas pessoas foram até a casa dela para serem atendidas também.

Essa senhora revelou já ter sido chamada de bruxa, feiticeira entre outras coisas, pois, ao que tudo indica, ela é capaz de prever ou saber de coisas que as pessoas não contam. Porém é válido ressaltar que:

Tudo é potencialmente sagrado, mas apenas em alguns lugares escolhidos o potencial é realizado. A manifestação de poder do sagrado em determinados lugares o diferencia dos demais lugares. O poder do sagrado pode ser atraente, tornando o lugar um centro convergente de crentes, ou pode ser apavorante e repelente, tornando o lugar tabu, considerado maldito. (ROSENDAHL, 1996: 67-68)

Dona Florentina é extremamente religiosa e cativante, consegue reunir em seu território diferentes pessoas, e por meio de sua religiosidade é capaz de ajudá-las conversando, rezando, abençoando e confortando das angustias que se encontram.

2- Trajetória de vida: as revelações

Filha de franceses, nascida no Paraguai aos vinte e nove anos pretendia ser freira na Argentina, contudo, na cidade de Buenos Aires recebeu uma recusa por parte da Igreja Católica. Ela ficou tão frustrada com essa negativa que tentou se suicidar entrando na frente de um trem, porém não teve coragem de encontrar com a morte naquele momento.

Na vida dos grandes místicos averiguamos uma clara e distinta manifestação do Sagrado num determinado espaço, ou acontecimento, fazendo com que essas pessoas numa ação de transformação assumissem um itinerário catalisador levando o contexto de outrora vivido numa dimensão de hierofania.

Segundo Francisco García Bazán

Embora a etimologia da palavra “mística” , da raiz grega my, presentes por caminhos diversos em ta mystik’á (o que se refere a certos ritos), hoi mystikoí (os iniciados em tais ritos) e mystérion (secreto), vincula-se estreitamente com a própria natureza da experiência que procura designar, isto é, com um tipo de vivência humana extraordinária e estranha e por isso indescritível [...]. (BAZÁN. 2002, p. 85-86).

São Bernardo chega a dizer: "O espaço é você". Ou seja, com a lucidez do auto-conhecimento, a pessoa é levada a desmistificar o sentido do viver, do pensar, do agir, do expressar, decodificando na cotidianidade existencial que o sujeito (eu) pertence a um todo, que cada criatura é complemento da outra e que somos partículas de um todo, transcendente, que estamos unidos sinergicamente.

Primeiro, o espaço sagrado é um meio de comunicação com os deuses e a respeito dos deuses. Segundo, é um lugar de poder divino. Terceiro, serve como um ícone visível do mundo e, portanto, em parte uma forma e uma organização aos seus habitantes.(BRERETON, J. P. apud ELIADE, M.)

Essa percepção individual da dona Florentina deu-se no hospital Pirovano (Uruguai), quando por motivo de um desmaio ficou internada por cinco meses. Já estava desenganada pelos médicos quando num dia, aconteceram coisas misteriosas, que ela relata como se fosse um chamado, uma voz que dizia: “Florentina, Levanta-te salva teu calvário!” onde atesta ter visto espiritualmente uma enorme cruz sem Jesus Cristo.

No mesmo hospital em que ficou internada foi ao quarto de uma senhora que estava morrendo, chegando lá fez uma massagem nessa mulher e a mesma não morreu. A partir daí sua fama se espalhou pelo hospital e outras pessoas passaram a procurar dona Florentina para fazerem pedidos.

Ao sair do hospital pediu uma carta de apresentação para conseguir um emprego e foi para o Rio de Janeiro. Chegando naquela cidade conseguiu trabalhar na casa de um químico e logo depois se mudou para Campo Grande onde mora até hoje.

Este insight foi o porvir de uma longa trajetória que assume até hoje como uma missão, pois manifesta para todas as pessoas que a procuram um dom sobrenatural, que não faz parte do senso comum, daí o sentido do espaço sagrado que foi capaz de construir, fazendo com que muitos a procurem para ser abençoado ou poder ouvir alguma coisa a respeito de si, no presente que seja possivelmente vivenciado no futuro.

3- Florentina e seu envolvimento paroquial.

O primeiro encontro com a comunidade, que estava em andamento, ou seja, nos seus inícios, se deu no ano de 1967, quando esta foi apresentada ao Padre Righetti, pela irmã Aurencie. Naquela época faltava tudo e um dos primeiros trabalhos foi pedir doação de material litúrgico para a celebração da eucaristia que acontecia numa tapera, onde mais tarde se construiu um barracão para atender a diversos ofícios.

No sábado à tarde, junto com outras pessoas colaboradoras, munidas de baldes, vassouras, panos e rodos iam limpar o barracão, que servia para as celebrações religiosas, passar filmes e teatro. No domingo havia a missa, encontro de catequese e ao longo do dia atividades, onde ficava também no barzinho e dava assistência aos garotos que machucavam nas brincadeiras. Pode-se dizer que o domingo todo estava ali, dando sua parcela de colaboração e ajuda até a noite, onde enfrentava o matagal para voltar para a casa com as crianças.

Seu desprendimento é tal que, mesmo passando por grandes dificuldades financeiras, foi capaz de doar três terrenos a comunidade da vila Almeida e não estando satisfeita com isso doou mais um terreno ao bispo, Dom Antônio Barbosa, onde hoje está construído o centro comunitário da mesma vila..

Naquela época começou a movimentar a comunidade para construir a Igreja, esbarrando num pequeno problema, a autorização para o fechamento da rua, de modo que esta fosse construída num lugar de destaque e presença, aqui entra a influência da dona Florentina, que através de um vereador conseguiu que a câmara liberasse o fechamento da rua, num tempo que diria recorde para a época, em menos de três meses. E assim a Igreja começou a ser construída onde se encontra hoje, a paróquia de nossa senhora Auxiliadora.

Consciente se sua missão foi capaz de passar por várias provações, sejam elas críticas por parte da comunidade ou em alguns casos de alguns padres que a consideravam como uma bruxa. Em certa ocasião acusaram-na de estar ganhando muito, e até fizeram um abaixo assinado pra tirá-la. Mas na verdade todas as pessoas que iam a sua casa em busca de uma benção ou cura ela pedia alguma coisa que oferecia gratuitamente a Igreja, daí os comentários que ela ganhava muito, mas simplesmente ela fazia o papel de ponte, entre as pessoas que doavam e a Igreja. Segundo dona Florentina “as vezes nem pão tinha em casa para dar aos meus três filhos, mas o amor e a fé em Deus e a Nossa Senhora fazia com que almas generosas vinham nos socorrer”. Somente uma pessoa imbuída de certos princípios e compreensão seria capaz de transpor certas intempéries e superar preconceitos concedendo perdão e aceitação das opiniões alheias.

Assim, como nos muitos casos de experiência mística, temos aqui uma forte conexão da pessoa da dona Florentina com a revelação divina e assume que por esse motivo assumiu esta missão, de ser instrumento para os fiéis como ponte de ligação, levando a todos que a procuram uma experiência de amor e a fé em Deus e em Nossa Senhora.

A festa de comemoração, onde se expressa a devoção aos santos, é celebrada anualmente no dia 8 de dezembro. Dá-se como um momento de agradecimento pela missão recebida com distribuição de doces, bolos e refrigerantes para as crianças.

O trabalho de dedicação no barracão, que mais tarde conseguiram erguer a Igreja, foi devido a uma visão que teve do chamado a estar naquele lugar, no ano de 1966, na visão, uma jovem senhora de semblante vibrante e auréola na cabeça convidava a tomar conta daquele lugar (Igreja) como se fosse da sua casa.

Outra visão que teve foi do Pai Eterno, dizia ela que, o Pai estava numa alta montanha sentado apoiado um dos pés numa pedra e a outra no chão, aproximou-se, chorando, encostou a cabeça no seu colo, onde o Pai disse: “porque choras? Coragem, nenhuma das pessoas que a critica poderá vencer, pois estou contigo”.

No ano de 1966, quando teve um sonho com o Papa, logo contou ao padre Righetti e a irmã Fúlvia, relatando que o papa viria em Campo Grande, no bairro Santo Amaro, ambos riram do que ela estava falando e depois a chamou de louca por dizer tal coisa. Mas conforme o predito, o fato aconteceu nos dia 17 de outubro de 1991, quando o Papa celebrou a missa naquele bairro.

4- Reconhecimento da comunidade e do clero

Além da participação ativa da comunidade na capela que se localiza na casa de dona Florentina existe uma manifestação de carinho e agradecimento a essa devota explicitado e documentado em cartas e presentes destinados a ela. De todos esses anos de missão, essa senhora arquiva um montante de trinta e seis quilos de cartas-testemunhos.

Em uma dessas cartas-testemunhos encontramos tais manifestações da comunidade agradecendo os três terrenos que ela conseguiu para construção da Igreja de Nossa Senhora da Misericórdia e a imagem dessa santa, que lhe foi revelada por meio de sonho; o crucifixo do presbitério também foi doado por ela. “Graças a Dona Florentina, hoje temos a graça de contarmos com Nossa Senhora da Misericórdia, que homenageamos desde o começo, no dia quinze de setembro.” (OLIVEIRA, 2005).

O reconhecimento dessa devota não fica somente no âmbito da comunidade dos fiéis, mas também por parte do clero daquela paróquia onde se localiza aquela senhora, pode-se perceber isso com o testemunho do pároco Mario O. Panziero, na ocasião da comemoração dos cinqüenta anos de missão de dona Florentina.

Dona Florentina é missionária, evangelizadora e profeta da paz [...] sempre foi evangelizadora do povo. Sinto-me honrado como pároco em ter uma pessoa, uma evangelizadora que sempre estava à frente da missão, com iniciativa de preparar celebrações, festa para as crianças, procissões, homenagens à Nossa Senhora.

Eis a profeta da fé, orientou e orienta a viver a fé a viver o sacramento da confissão, da eucaristia a fazer orações verdades, a controlar a língua, os atos, o coração.

50 anos de Missão, a serviço do Pai! (PANZIERO, 2004)

5- Considerações Finais

Sabemos que as manifestações do sagrado ocorrem no tempo e no espaço. Como o tempo, o espaço é uma dimensão inescapável da vida humana. O reconhecimento da sacralidade de certos lugares é fundamental para a construção do sentido da vida. O local de uma hierofania, cratofania, ou teofania, é, por excelência, um lugar de poder e de sacralidade. De acordo com Eliade:

[...] toda a cratofania e toda a hierofania, sem distinção alguma, transfiguram o lugar que lhes serviu de teatro: de espaço profano que era até então, tal lugar ascende à categoria de espaço sagrado. (ELIADE. 1993, p. 295)

Podemos dizer que na residência da dona Florentina, situada a rua Guiratinga, há um pequeno templo, um cantinho predileto (capela), ornado com relicários, imagens, velas, fotografias, símbolos místicos, cartas das testemunhas e diversos amuletos, como bengalas, pernas de cera e mesmo cabeças que simbolizam as curas, tornando o lugar sagrado.

O verbo latino sancire (cujo particípio é sanctum) quer dizer "consagrar, reconhecer". O território em questão, como atestam os testemunhos, sem margem de dúvida é consagrado e em todos os atendimentos que se faz, há um certo direcionamento para que o fiel se aproxime mais de Deus, sendo mais ativo e participativo na Igreja, ou seja, na sua paróquia. O espaço é Cristo.

Sempre, aos domingos, encontramos na Igreja dona Florentina, fazendo comunhão, e ao aproximar da comunhão, estando na fila juntamente com aquelas pessoas que são mais próximas a ela, e que não estão de acordo com as leis da Igreja, ela sussurra em seus ouvidos que não são dignas de tal comunhão, fazendo com que as pessoas tomem mais consciência de seus atos e se preparem melhor para receber o Cristo.

6- Referências

BAZÁN, Francisco García. Aspectos Incomuns do Sagrado. São Paulo: Paulus, 2002.

BRERETON, J.P. Sacred Space. New York: Macmillan, 1987. vol. 12, p. 528.

ELIADE, M. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MOLINOS, Miguel. Defensa de la Contemplación. Madri: Fundación Universitaria Española y Universidad Pontificia de Salamanca. 1988.

OLIVEIRA, Francisco Manoel Araújo de. Comunidade Nossa Senhora da Misericórdia. Campo Grande / MS, 15/09/2005. Carta.

PANZIERO, Mario O. Florentina Armoa: Missionária... Evangelista.... Carta a dona Florentina Armoa. Campo Grande / MS, 29/08/2004. Carta.

ROSENDAHL, Zeny. Espaço e Religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996.


*Texto publicado no livro: O sagrado e o místico da fé católica no contexto da territorialidade urbana em Campo Grande-MS / Maria Augusta de Castilho (organizadora) - Campo Grande: UCDB, 2006.




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